A trajetória ceramista de antes das fazendas de café à tecnologia digital na conquista do mercado exportador.
A certidão de nascimento da História foi registrada no momento em que a palavra passou a ser escrita em peças cerâmicas. A época anterior ficou sendo chamada de pré-história porque não havia como se registrar por escrito a aventura humana em sua trajetória pelo mundo.
Mas o trabalho cerâmico é muito mais antigo que a História. Ele nasce junto com a humanidade, ou mesmo antes do ser humano, que teria sido feito de barro pelo Criador, o primeiro oleiro. De lá até aqui, a humanidade usou da cerâmica para completar a construção do mundo.
ONTEM
As técnicas de produção cerâmica trazidas ao Brasil pelos conquistadores portugueses não foram nenhuma novidade para os índios que nas Américas as dominavam há milhares de anos. Na região de Rio Claro antigos registros cerâmicos datam de, no mínimo, mil anos. Para alguns pesquisadores, passam de dez mil.
Artefatos localizados na Vila Paulista, na região da Floresta Estadual “Navarro de Andrade”, comprovam o fato, como uma urna mortuária preservada no Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno da Veiga”.
Com o povoamento do interior paulista antes dos anos 1800, logo as construções de casas em madeira e cobertas de palha passaram a ser erguidas com material cerâmico, depois de superarem a fase de serem construídas em taipa de pilão, como ainda foi o caso do prédio original do Museu Amador Bueno da Veiga em 1863. Telhas ofereciam maior segurança contra incêndios do que coberturas feitas com folhas de palmeiras ou sapé.
Os casarões que vieram depois já eram erguidos com tijolos, alguns também com pedras, a exemplo do Casarão do Grão Mogol, de 1883, em Ajapi.
A partir dos anos 1840, a construção de terreiros de café demandava o consumo de tijolos em meio à alvenaria para casas na expansão urbana de Araraquara, São Carlos, Rio Claro, Limeira, Piracicaba e Campinas. Rio Claro abrangia Santa Gertrudes, Itirapina, Corumbataí, Analândia e Ipeúna.
O consumo de produtos cerâmicos incluía utensílios de barro
para uso doméstico, para infraestrutura urbana, além de tubos e manilhas para sistemas de esgoto. As fazendas contavam com suas próprias olarias.
Desde então, a privilegiada presença de argila em sítios locais destacaria Rio Claro e Santa Gertrudes no interior paulista pela organização de olarias, que ganhariam características e denominação de cerâmicas décadas depois, e abriria mercado para a produção de cal, vidro, marcenarias, bem como demandaria a formação de pedreiros e mestres de obra.
As olarias desde o início dos anos 1800 se distribuíam por Santa Gertrudes e pelos bairros de Sobrado, Batovi, Serra D´Água, e São Bento com produção artesanal.
O Almanaque da Província de São Paulo para 1873 registra Rio Claro como o segundo município paulista com maior número de olarias. O primeiro era Campinas. Dentre as cidades com mais olarias, destacam-se: Campinas – 13; Rio Claro – 11; São Paulo – 10; Sorocaba – 9; Itu – 8; Limeira – 6. Piracicaba, Araraquara e Santos tinham 5.
O Almanaque São João do Rio Claro para o mesmo ano, organizado por Tomas Carlos Molina, divulga que havia 4 depósitos de cal e as 11 olarias de Rio Claro tinham seus pontos de venda na área central, nas ruas 3, 7 e 8 e nas avenidas 1, 2 e 3. Na época as vias tinham nome. A numeração seria foi adotada em 1886.
Os proprietários traziam sobrenomes português, espanhol e alemão. Os sobrenomes são Gonçalves, Rodrigues, Gurgel, Guimarães, Bueno, Russo, Godoy e Hebling. A forte presença de sobrenomes italianos na indústria cerâmica iria se dar a partir dos anos 1880.
A mão de obra para a construção civil e serviços do segmento abrangia 1 arquiteto, 11 pedreiros e as turmas de “Marcellino Gerar, Felix Flores, escravos de Amorim, da viúva Franco e muitos outros” e 33 mestres de obras e carpinteiros, informa Molina.
HOJE
As indústrias de cerâmica e revestimento de Santa Gertrudes, Rio Claro, Limeira, Cordeirópolis, Iracemápolis, Ipeúna e Piracicaba compõem hoje o maior polo cerâmico das Américas e o segundo maior do mundo.
O segmento é representado por duas entidades que de forma integrada oferecem suporte ao desenvolvimento de projetos à cadeia produtiva tendo em vista investimentos, logística e marketing.
O Sindicato das Indústrias da Construção do Mobiliário e de Cerâmicas de Santa Gertrudes (Sincer) foi constituído em 1960. Com o objetivo de ampliar a representação às cerâmicas paulistas, a Associação Paulista de Cerâmicas de Revestimento (Aspacer) foi instituída em 1999. A Aspacer reúne 32 cerâmicas do estado de São Paulo e opera com uma rede de representações do setor.
Com investimento em tecnologia e garantia de qualidade competitiva no mercado internacional, o segmento se mantinha aquecido com expectativas de expansão até a presente crise mundial.
Conforme o portal G1 de notícias, em 2016 as exportações renderam ao setor ceramista de Santa Gertrudes R$ 39,5 milhões e R$ 22 milhões em Rio Claro, perfazendo um total de R$ 61,5 milhões.
A memória desses quase duzentos anos de produção cerâmica no interior paulista remete à verificação de sua história. Referências para tanto são localizadas a partir da origem e desenvolvimento do setor em Rio Claro, pelo fato de o município haver sido sede de cidades da região até os anos 1950.
SANTA GERTRUDES
Município autônomo a partir de 1948, Santa Gertrudes tem sua origem em parte da lendária sesmaria de Morro Azul concedida em 1817 à família de Joaquim Galvão de França. Na época, o governo de São Paulo projetava o povoamento dos antigos sertões do chamado Oeste Paulista.
Na sequência de herdeiros e com anexação de outras terras, a propriedade passou ao Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão e sua mulher Gertrudes Galvão de Oliveira Lacerda. Herdeiro do casal, o Barão de São João do Rio Claro, Amador Rodrigues de Lacerda Jordão, deu início à abertura da fazenda à qual deu o nome de mãe.
Viúva do barão e sem herdeiros, Maria Hipólita dos Santos Silva casou-se com Barão de Três Rios, depois visconde, conde e marquês, um dos personagens mais ricos do Império. O herdeiro, Conde de Prates, ampliou a propriedade com sucessivas anexações entre 1894 e 1910. Conforme apurou Romeu Ferraz, a área chegou a abranger 1.345 alqueires e tornou-se concorrida para a instalação de novos proprietários na vizinhança.
Desde chegada do trem, em 1876, formava-se nas proximidades da estação o povoado que se concentrou no entorno da terra doada por Joaquim Rafael da Rocha para construção da igreja devota do padroeiro São Joaquim, em 1925. O relato é de Oscar de Arruda Penteado.
Segundo ele registra, até o distrito ser desmembrado, seus representantes na Câmara Municipal de Rio Claro foram os vereadores Marcelino de Godoy, Clodomiro Franco Andrade, Amâncio de Araújo Lima, Carlos Freire de Figueiredo, Joaquim Rafael da Rocha, Miguel Rafael da Rocha, Antonio Buschinelli. Na época, Santa Gertrudes era conhecida como a “Manchester Rio-Clarense” por sua produção cerâmica.
Vencida a fase artesanal das olarias, a produção industrial ganha impulso entre as décadas de 1920 e 1930. Na época os produtos eram telhas paulistas e francesas, para na sequência incluírem o lajotão colonial e os pisos de revestimento. Com o desenvolvimento tecnológico nas décadas a seguir, estes ganhariam o mercado exportador.
RIO CLARO
O núcleo urbano de Rio Claro foi formado entre as sesmarias da família Joaquim Galvão de França e as de Goes Maciel, Irmãos Pereira e Costa Alves.
Área adquirida dos Irmãos Pereira pela família de Manoel Paes de Arruda foi doada à Igreja para os moradores das proximidades do Córrego da Servidão construíram uma capela em devoção a São João Batista, em 1827. A referência geográfica do chamado Ribeirão Claro deu-se nome ao povoado.
A contar de desmembramentos e aberturas de outras fazendas, nas fases sequentes de formação da cidade a produção agrícola reuniu membros de família como Camargo, Godoy, Bueno, Ferraz de Campos, Rodrigues Jordão, Arruda Leite, Pacheco Jordão, Vieira Barbosa, Oliveira, Arruda Penteado, Almeida Prado, Teixeira das Neves, Almeida Camargo, Schmidt, Mesquita e Campos Salles.
Com o desenvolvimento da agricultura, Rio Claro chegou a se tornar o terceiro maior produtor de café de São Paulo. Os anos 1930 irão marcar o esgotamento do modelo agrícola com a transferência da riqueza econômica do interior para a Capital e o início de um lento processo de industrialização do interior. Das produções tradicionais do município, deu-se o esvaziamento da cultura do café, ferrovia e da cerveja. A única que se manteve, sempre crescente, foi a indústria cerâmica.
CERAMISTAS
A primeira grande fábrica de produtos cerâmicos do Brasil foi fundada em São Paulo, em 1893, por quatro irmãos franceses, naturais de Marselha. O nome da empresa era “Estabelecimentos Sacoman Frères”, posteriormente alterado para Cerâmica Sacoman S.A. Suas atividades foram encerradas em 1956. O nome das telhas conhecidas por “francesas” ou “marselhesas” é devido à origem destes empresários, conforme o Anuário Brasileiro de Cerâmica, 1979.
Em análise de estatísticas industriais, Júlio César Bellingieri localiza que entre os anos 1920 e 1930, a grande maioria das empresas de cerâmica (vermelha ou branca) no estado de São Paulo foi fundada por imigrantes ou descendentes de imigrantes italianos e portugueses, os quais, certamente, já deveriam conhecer as técnicas de produção, uma vez que estes países possuíam uma indústria ceramista desenvolvida na época.
Registros da época, segundo ele, narram a história de muitos empresários que, em geral, iniciavam suas atividades abrindo pequenas olarias e cerâmicas com pouco investimento. Alguns, depois de acumularem recursos trabalhando na lavoura de café.
Nas diversas e detalhadas pesquisas sobre a evolução de Rio Claro a cientista de Geografia Industrial pesquisadora Silvia Selingardi Sampaio mostra que entre 1873 e 1927 as unidades locais e produção de telha e tijolos passaram de 11 para 40. No total as empresas industriais evoluíram de 46 para 142.
De tradicional imigração germânica, Rio Claro dispôs de sobrenomes alemães entre ceramistas desde 1873, conforme se viu. O álbum “História de Rio Claro”, publicado por Romeu Ferraz em 1922, traz publicidade da empresa suíça e alemã “Serraria e Cerâmica Schmidt, Meyer & Cia”. Original de 1910, a empresa produzia tijolos e telhas em suas unidades de Santa Gertrudes e Corumbataí.
Em Rio Claro ficava a serraria da unidade Schmidt, localizada na esquina da Rua 1 com a Avenida 3. Nos anos seguintes, Bruno Meyer tornou-se pioneiro da indústria metalúrgica local. Com esta atividade instalou-se na esquina da Rua 7 com a Avenida 7. Produzia máquinas para engenhos e construiu uma das primeiras torres de petróleo do país para prospecções na Assistência.
O “Álbum de Rio Claro”, publicado em 1951 por Nelson Martins de Almeida traz igualmente anunciantes ceramistas. Rocha Penteado divulga a Cerâmica Vila Martins, com escritório na Rua 1 nº 861. A oferta é de telhas francesas, telhas paulistas, tijolos furados e manilhas.
A mesma publicação anuncia a “Cerâmica Brasil”, empresa de Ferreira e Irmão, fundada em 1927 e localizada na Rua 4 nº 486. Telefone 237. O anúncio destaca sua premiação com o Diploma de Honra na Exposição Industrial do 1º Centenário de Rio Claro em 1927.
Ainda no álbum é reportada que com a dissolução em 1938 da sociedade “Bianchini & Quilici”, de Floriano Bianchini e Leonardo Quilici, o primeiro assumiu o controle da cerâmica produtora de telhas e de uma fábrica de cal na Assistência.
A divulgação informa que dois anos depois Bianchini comprou uma máquina para fabricação de tubos de barros. Em 1945, ampliou a fábrica de telhas. Os filhos constituem a “Irmãos Bianchini & Cia Ltda”, investindo na ampliação das instalações para nova cerâmica com fabricação de manilhas. A produção era 80 mil tubos mensais. Em 1949 firma passa a categoria de “Indústrias Floriano Bianchini S.A”
Ainda conforme Selingardi Sampaio, entre as décadas de 1960 a 1990, o número de empresas ceramistas oscilou em torno da média de 92. O maior número foi de 109, isto em 1975. O maior número de empregos gerados chegou a 1.075 em 1980 ocupadas por 90 estabelecimentos.
Entre 1980 e 2000, os estabelecimentos variam de 90 para 69, como pico de 104 em 1990.
Aspecto particular do segmento é registrado em 1970 com a instalação da Coban AS, fabricante de material cerâmico para instalações industriais, subsidiária de uma empresa norte-americana.
A pesquisadora assinala que o ramo cerâmico tem efeito multiplicador no processo de industrialização que demanda maior aporte de capital, incorpora maior complexidade tecnológica de processos e de produtos em uma estrutura produtiva diversificada e avançada.
COMPLEXO INDUSTRIAL
O polo cerâmico de abrangência regional que tem como centro o município de Santa Gertrudes e a inclui Rio Claro Cordeirópolis, Limeira, Piracicaba e Ipeúna abrange empresas de grande, médio e pequeno porte, que são responsáveis por 86% de toda a produção do setor no estado de São Paulo.
A concentração de indústrias reúne unidades de vários ramos e setores: indústrias extrativas de mineração de argila e outros minerais; de transformação de minerais não metálicos, com produção de calcário e cerâmicas (telhas, tijolos e revestimentos cerâmicos) metalúrgica, com construção de moldes para indústria cerâmica; química, com produção de pós, tintas e vernizes para revestimentos cerâmicos.
Ganha dimensão maior que apenas um polo, mas sim um complexo industrial cerâmico, alinha Selingardi Sampaio, que lista entre as empresas de porte:
Industrial Cerâmicos Fortaleza Rio Claro Ltda.; Delta Indústria Cerâmica; Rocha Gres Pisos e Revestimentos Ltda.; Cerâmica Cristofoletti; Cerâmica Savane, antiga Cerâmica Ferreira; Conpar Pisos Kardênia; Cerâmica Thomazella Santa Marta Ltda.; Duragres Indústria Cerâmica Ltda e Cerâmica Alfagres Indústria e Comércio Ltda.
Há indústrias que produzem equipamentos para indústrias cerâmicas, como a Icon Estampas e Moldes S.A, a Mapoker do Brasil Equipamentos Cerâmicos Ltda, Hidracer Equipamentos Cerâmicos, a Assefor Serviços e Equipamentos pra Cerâmica Ltda etc.
Outras fornecem tintas, vernizes, esmaltes e diversos produtos químicos para empresas de pisos e revestimentos, tais como a Perfortex – Indústria de Recobrimento de Superfície Ltda, a Terrar Indústria e Comércio Ltda (Esmaltec), a Uni-Color Indústria e Comércio de Esmaltes Cerâmicos, a MQB Aditivos Cerâmicos S. A, a Esmalglasse do Brasil Esm. E Corantes Cerâmicos etc.
FUTURO
Com o avanço das exportações de revestimento cerâmico e a ampliação das unidades dos diversos ramos de sua produção possibilitados pelo desenvolvimento tecnológico empreendido pelas empresas, o setor continua evoluindo e segue às portas abertas pela globalização, sob a expectativa do futuro da economia mundial na presente crise.
Foto: Divulgação
Por J.R. Sant´Ana