Tomazo Nani tinha feições rudes mas era um bom homem. Ninguém naquela abençoada escola via com bons olhos aquele senhor grandalhão, de cara fechada que se dedicava a cuidar da horta nos fundos. Chegava bem cedo, todos os dias, sempre calado, pegava suas coisas de trabalho, que não eram muitas e se dedicava com afinco à tarefa.
Curiosamente, apesar de sua presença não causar boa impressão a alunos, professores e funcionários da escola, as alfaces passaram a ser maiores e mais vistosas depois que o Sr. Nani passou a cuidar delas.
Quando nada tinha a fazer na horta, ia varrer a frente da escola. Sempre calado, absolutamente entretido com o seu trabalho, que fazia com muito capricho.
As feições rudes do Sr. Nani e o seu proceder excessivamente reservado, impediam que as pessoas soubessem que ele era um bom homem. O primeiro a perceber isso foi o professor Eugênio, o mais culto, o mais preparado, o mais dedicado e interessado à matéria que lecionava, e, por isso, também, o mais subestimado entre os professores e pela direção da escola.
Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, a mais insignificante das matérias, para a maioria dos pais dos alunos, que diziam à boca miúda entre si, durante as reuniões de pais e mestres: Letrados neste país, morrem de fome, não têm futuro.
Certa manhã, o Prof. Eugênio resolvera arriscar uma aproximação do Sr. Nani. Deixou propositadamente cair suas coisas no chão e saíra-se com essa em tom audível e claro: “No meio do caminho tinha uma pedra”. Esperou por alguma reação, durante um breve instante, e nada.
Levantou-se quando seus joelhos apoiados no chão já reclamavam, enquanto apanhava suas coisas. Nenhuma observação, nenhuma resposta do Sr. Nani. Nada. Nada mesmo. Apenas, o silêncio que lhe era habitual.
Decepcionado e dando-se por vencido, o Prof. Eugênio, já havia caminhado um pouco em direção ao corredor que levava a sala dos professores, quando então, o Sr. Nani, em alto e bom tom, respondera dessa forma:
“No meio do caminho tinha uma pedra… Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”.
Em dois anos, pela primeira vez os olhos de ambos se encontraram. Aquele foi um dia feliz na vida do Prof. Eugênio. Indicava que sua crença no ser humano não era em vão. Na saída da escola, cruzou com o Sr. Nani, como a esperá-lo, porque todos já haviam ido embora para suas casas. O professor Eugênio surpreendeu-se quando viu que o Sr. Nani lhe estendia a mão na qual segurava um livro. Um pequeno livro, no formato pocket book, já um tanto velho e surrado.
“Fará melhor uso do que eu” – disse-lhe o Sr. Nani.
Era um livro de Herberto Helder, um poeta português.
Um tanto hesitante, o professor Eugênio, olhou ainda uma vez na direção do Sr. Nani, na dúvida se deveria aceitar o presente. Não porque não apreciasse aquele autor. Mas, porque, muito provavelmente, aquele livro, talvez fosse a única companhia do introvertido e distante homem que tinha diante de si.
Tornaram-se amigos, a ponto de um frequentar a casa do outro, aos sábados à tarde, quando conversavam bastante um pouco sobre tudo. Eram duas pessoas solitárias e vivendo cada qual em seu mundo, que haviam construído para que pudessem cada qual sobreviverem neste mundo, o mundo real, que, para eles, era um tanto confuso e hostil.
Foi dessa convivência que o Prof. Eugênio soube um pouco da história do Sr. Nani. Filho de um ferroviário e uma dona de casa, católica praticante e temente a Deus, devota de Nossa Senhora Aparecida, Tomazo Nani, fora o único dos 5 irmãos a se formar. Para pode estudar, fora ainda muito criança, morar com os avós maternos. Estudara no Colégio Santa Cruz. E, depois, fora trabalhar bem cedo. Ganhara seus trocados como ajudante de confeiteiro, carregador de sacas de açúcar, vendedor de amendoim, mensageiro, auxiliar de escritório. Ingressara no Colégio Técnico Arthur Bilac, tivera aulas com o Prof. Vitorino Machado, formara-se Técnico em Contabilidade e fora promovido na firma onde trabalhara por longos 25 anos. Namorara, noivara, comprara casa, automóvel, tivera filhos, adquirira propriedades e fora até contemplado pelo moroso plano de expansão da Telesp, e assim, conseguira o tão importante e desejado telefone, antes que a maioria de seus vizinhos.
Mas… eis a vida a trazer surpresas e desencantos. A esposa adoecera, os filhos não corresponderam às expectativas e os negócios aos quais se aventurara foram mal sucedidos. Perdera tudo o que conquistara. Perdera o encanto para com a vida, a fé em si mesmo, menos em Deus. O filho mais novo, que tinha seu nome também, via com interesse o pai, todos os dias, rezar às 6 da tarde, o ângelus e a bonita “salve rainha”.
Aposentara com um salário mínimo, aos 65 anos. Fora morar em uma casa modesta, quarto, cozinha e banheiro, graças à bondade e à confiança de um amigo seu, corretor de imóveis, que não lhe exigira fiador. E para ocupar o tempo com coisa útil, entrara em um programa temporário de assistência social da prefeitura, através de um amigo da vereança
Os reveses da vida, lhe ensinaram que todo homem tem seu preço e toda mulher os seus interesses e ninguém é infalível. E que os filhos, geralmente, esperam tudo dos pais, mas não estão dispostos a dar nada em troca.
Os romances que lera ilustravam com letras muito vivas a realidade que conhecera de perto. Sobre eles, conversava, por vezes, com o Prof. Eugênio, que sempre lhe sugeria a leitura de outros livros, talvez mais interessantes e que o fizessem pensar de outra forma, mais otimista.
A vida, tal como a conheci, não me permite ser otimista, professor. Era sua resposta habitual.
Ninguém conhece outras terras, meu caro Tomazo, se não sair do lugar.
Meus avós fizeram isso e acho que se arrependeram. E depois, dessa bravata, vinha um sorriso tímido, meio que disfarçado.
Tomazo Nani não tinha por hábito conversar com as pessoas olhando-as nos olhos. Dizia que o olhar é também uma forma de compromisso e não estava disposto a assumi-los.
No último dia de trabalho na escola, findo o programa temporário da prefeitura, ele não fora trabalhar. E ninguém, na escola, nem alunos, nem professores e nem funcionários se deram conta disso, o que demonstrava o tamanho apreço que tinham pelo cuidador da horta.
O Prof. Eugênio, porém, fora até a casa de seu amigo. Batera ao portão e como ninguém atendera, resolvera entrar mesmo assim, ao perceber que a porta estava apenas encostada. Encontrou Tomazo Nani, sentado à mesa. Tinha a cabeça pendida sobre o peito. E ao alcance da mão, um bilhete, que assim dizia: “Ao meu amigo professor, gratidão”.
A xícara de café, deixado pela metade, tinha um aroma estranho. E naquela modesta cozinha, reinava absoluto, um ar de despedida.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Reprodução das internet