A lendária Sociedade do Bem Comum foi a primeira organização política de Rio Claro e uma das primeiras agremiações partidárias do Brasil. Criada em 1832, a entidade reunia fazendeiros para ordenar a formação da cidade e organizar a construção da igreja. Foi extinta em 1839. Na falta de informações, seu existência sugere um mistério.
Primeiros serviços
Naquele momento, Rio Claro era um bairro que se abria em Piracicaba e que em 1827 passara a contar com os primeiros serviços públicos locais por sua elevação à categoria de distrito ou capela curada, conforme se dizia na época. Mas era preciso ampliar os serviços locais e ordenar o desenvolvimento do povoado no entorno da igreja a ser construída. Em torno de uma igreja é que as cidades se formavam. A Sociedade do Bem Comum se dispôs a cuidar disso.
Igreja
Os primeiros serviços públicos já eram prestados na capela de São João Batista, entre eles os registros de nascimento, batismo, casamento, óbito e também registros de terras. Bem como as primeiras iniciativas de educação pública. Em meio a isso, a associação de fazendeiros pretendeu ser uma espécie de subprefeitura de Piracicaba.
Eleitoral
Na época, as eleições eram realizadas nas igrejas. Como o Brasil começava a eleger deputados e senadores, a expectativa da associação e dos organizadores do povoado era organizar eleitoralmente o distrito. Os considerados fundadores de Rio Claro senador Vergueiro, Antonio Paes de Barros e outros tinham bases eleitorais na região.
Com a Independência (1822), o Brasil engatinhava na organização eleitoral. Não havia partidos e os candidatos disputavam por candidaturas avulsas. Um mandato legislativo representava porta aberta para o poder público imperial, de difícil acesso por estar centralizado no comando da nobreza no Rio de Janeiro.
Mistificações
A falta de informações sobre a Sociedade do Bem Comum faz com que sua escassa memória fique sujeita a fantasias e sugeridos mistérios desde que os documentos sobre sua existência desapareceram ao longo do tempo. Deles restaram apenas testemunhos de terceiros e algumas transcrições. Versões idealizam a instituição. A maior parte a enaltece como uma entidade civil benemérita e prestadora de serviços públicos que o governo regional de Piracicaba negligenciava.
Estatuto
De seu estatuto tem-se que seria igual ao da sociedade congênere que existiu em Limeira. Ambos se perderam. A semelhança leva a crer que as duas organizações foram inspiradas por Vergueiro, patriarca das mesmas cidades.
Terras de São João
A principal função da Sociedade do Bem Comum foi vender os terrenos doados à Igreja para compor o chamado Patrimônio de São João Batista, na região central da cidade. O objetivo era reverter os recursos para a construção da igreja do padroeiro da cidade.
O sumiço do livro de compras e vendas, por volta de 1907, deixou um rastro de suspeitas sobre a regularização de terras no entorno da igreja.
Demandas judiciais ocorreram antes e depois do desaparecimento do livro e até recentemente. A responsabilidade da Sociedade do Bem Comum ou de alguns de seus membros ainda é um caso em aberto sobre como terras da igreja passaram à propriedade do município ou de terceiros. Até hoje é um assunto reservado, como toques de mistério.
Maçons
Outra penumbra que envolve a Sociedade do Bem Comum é a suposição de que sua origem tenha vindo de inspiração maçônica. Não há documentação acessível que sustente a hipótese. A possibilidade de assim tenha sido é facultada por acontecimentos da época.
No período imperial anterior à Independência, a atividade política era proibida no Brasil. A restrição tinha por cautela evitar a disseminação de ideias nacionalistas e de independência. Devido a isso, lideranças brasileiras se articulavam em grupos políticos secretos. Houve inúmeras associações desse tipo. A Maçonaria tornou-se a mais conhecida entre elas por sua sobrevivência até hoje. As demais associações desapareceram no tempo.
Vergueiro
A tradição atribui influência maçônica à Sociedade do Bem com base em coincidência de algumas datas. Naquele momento, Vergueiro organizava tanto as referidas sociedades de Rio Claro e Limeira quanto instituía no Rio de Janeiro o Grande Oriente Brasileiro.
Retrospecto
O fato remete à crise política nacional que por pouco não dividiu o Brasil em diversas republiquetas de bananas entre 1831 e 1841. Dom Pedro I havia sido expulso do país por consequência de conflitos insolúveis com a Câmara dos Deputados. Seu filho não podia assumir o trono por ser menor de idade. Os políticos se revelavam incompetentes para apaziguar o país. Insurreições e descontrole militar induziam a uma guerra civil.
Na falta de um titular para o trono, o governo nacional foi assumido por regentes provisórios, entre eles o senador Vergueiro. De curta passagem pelo comando do país. Ele era uma das figuras mais influentes naquele momento. Basta lembrar que, horas antes de ser deposto, Dom Pedro I havia procurado Vergueiro para tentar algum acordo com a oposição de forma que conseguisse manter-se no trono, sem sucesso. Não conseguiu localizar o senador e caiu.
Divisão
A crise nacional de 1831 não poupou internamente a Maçonaria, que sofreu divisão. Vergueiro desligou-se do Grande Oriente do Brasil, que acabava de ser reconstituído por Andrada e, juntamente com demais líderes nacionalistas, fundou o Grande Oriente Brasileiro. As sedes eram no Rio de Janeiro.
Como Vergueiro estava à frente de uma nova organização maçônica, a ideia mais comum é que tal influência tenha chegado a seus redutos eleitorais de Limeira e Rio Claro. Contribuem para sustentar essa ideia evidências de que as sociedades a ele atribuídas tivessem perfil liberal, descentralizador e nacionalista. Vergueiro era um líder liberal. Em 1842 articulou com Feijó o levante revolucionário liberal de São Paulo, que foi um verdadeiro fiasco. Acabou preso.
De onde veio
Do ponto de vista da história nacional não há nenhum mistério na formação da Sociedade do Bem Comum de Rio Claro.
Ela foi consequência direta da anarquia política que tomou conta do país com a expulsão de Pedro I em 1831.
Para se evitar uma guerra civil e retomar o controle da segurança pública, dois mecanismos foram criados pelo senador Feijó, também ministro da Justiça e regente do Império.
O primeiro instrumento foi a Guarda Nacional, milícia de cidadãos armados engajados na missão de garantir a ordem e o respeito à Constituição. O outro mecanismo foi a criação das chamadas sociedades políticas, precursoras dos partidos que viriam a ser formados mais tarde. O objetivo daquelas entidades era organizar a sociedade civil em defesa da pátria e da paz. Evitar que o território nacional de dividisse em pequenos países como aconteceu na vizinhança.
Assim foi feito. Quando a paz foi conquistada, aquelas sociedades foram desativadas. Mas seus membros se reorganizaram para dar origem aos dois primeiros partidos políticos do país, o Partido Liberal e o Partido Conservador. Ambos mantiveram-se ativos até a República.
Enquanto existiram, as sociedades de defesa da liberdade e da Constituição dividiam-se conforme as tendências políticas da época. Um grupo era liberal de centro. Outro era de liberais que flertavam com ideias republicanas e revolucionárias. Havia também o grupo que defendia os interesses dos portugueses que no Brasil mantinham soberania na política e no comércio. Esse mesmo grupo articulava o retorno de Pedro I para reassumir o trono. Militares também tinham sua própria sociedade.
O modelo de sociedade política que chegou a Rio Claro na forma da Sociedade do Bem Comum alinhava-se aos liberais de centro, sobre os quais Vergueiro tinha influência e poder. No Rio de Janeiro a liderança deste grupo era do deputado Evaristo da Veiga, mentor intelectual das sociedades políticas. Ele dizia que a época de sociedades secretas havia sido superada e que em um país livre as sociedades políticas tinham de ser abertas. Dispensava os segredos da Maçonaria.
Desativação
Com a morte de Pedro I em 1834, em Portugal, no Brasil acabou a paranoia de que o imperador voltasse para reassumir o trono e punir seus adversários. A temperatura política baixou. De fato, as coisas só entrariam no eixo no início dos anos 1840, quando o herdeiro Dom Pedro II assumiria o trono.
Sem a neurose do retorno imperial, os nacionalistas adequaram a Constituição a seus interesses. O pior da crise passava e as sociedades políticas criadas no Rio de Janeiro para manutenção da ordem perdiam o sentido. Seu modelo de organização, no entanto, continuou a ser adotado no interior do país, só que agora com objetivos de organização municipal, algo como um poder paralelo às câmaras municipais.
O fim
A Sociedade do Bem de Rio Claro foi criada nesse instante e com tal finalidade, especialmente para organizar a construção da igreja. Conforme a política nacional foi se acalmando, a sociedade de Rio Claro também foi se esvaziando. Em 1836 já tinha poucas reuniões. Sumiu sem deixar vestígios em 1839.
Além de Rio Claro e Limeira, as referidas sociedades políticas dos anos 1830 foram criadas em Itu, Jacareí, Campinas, Piracicaba, Porto Feliz, Mogi Mirim, Taubaté, Sorocaba e Atibaia. O liberal Teófilo Otoni, parceiro político de Vergueiro e de Feijó, criou em Minas Gerais a Sociedade do Bem Público. Em sentido amplo, Bem Comum e Bem Público se associam à ideia de República, ou propriedade do povo.
Câmara Municipal
Em 1845 a administração de Rio Claro tornou-se independente de Piracicaba e passou a ser exercida por sua própria Câmara de Vereadores. A Câmara requisitou os documentos remanescentes da Sociedade do Bem Comum que estavam aos cuidados do padre local. A documentação foi dada como desaparecida por volta de 1907. Foi vista pela última vez em 1905, quando o presidente era Marcello Schmidt.
Por José Roberto Santana