O barulho tenebroso da cumeeira solta do telhado não o incomodava nenhum pouco. Dinheiro não havia para consertá-lo. Mas, não ter dinheiro, era tragédia para a qual estava habituado. Desde que trabalhava como office-boy, ainda adolescente, era assim. O pouco dinheiro que entrava não parava no seu bolso. Não que fosse gastão, perdulário. Não. Nunca tivera vícios. Não frequentava bares, casas de prostituição, não fumava e não bebia. E as roupas que usava, as obtinha por doação de almas benevolentes compadecidas com seu infortúnio ou as adquiria a preço módico nos brechós da vida.
Também, ao contrário do que imaginavam alguns parentes, dos quais ele cuidadosamente se mantinha distante, nunca usara drogas. Nenhuma. Até porque de droga, já bastava-lhe a vida.
Crescera pulando de emprego. Nenhum importante. Nada que o colocasse em destaque perante a família e os amigos. Tornara-se um homem reservado, comedido, sem ambições.
Aos quarenta anos, se descobrira misantropo, algo que já desconfiara aos 30, quando buscava sempre a poltrona mais isolada do cinema ou a mesa mais distante e menos ocupada da lanchonete.
Não suportava o contato físico das pessoas. Evitava abraçá-las. Nunca lhes estendia a mão. Arrumava um pretexto, uma desculpa para não fazê-lo. Odiava lugares repletos de gente. E, por essa razão, abdicara de assistir no estádio, aos jogos do seu querido Velo Clube.
Não suportava filas. E sempre que alguém, um estranho, lhe pedia uma informação ou tentava um diálogo, fazia-se de surdo e se afastava. Para isso, bem lhe servia o celular. E somente para isso. Fingia que recebia uma ligação naquele exato instante e dava no pé, deixando no ar o seu interlocutor.
Robert Jordan não acreditava em Deus. Fora outra de suas prazerosas descobertas da maturidade. E pensar que quase se tornara coroinha da paróquia do bairro onde morava, quando tinha 12 anos e fizera a primeira comunhão. A primeira, e nenhuma outra. Aquela rodinha grudando no céu da sua boca, aquele gosto de uva amarga, não lhe causara boa impressão.
Vez por outra, na companhia do pai e da avó assistia à missa do galo, à meia-noite, diante da tevê. Gostava de admirar a arquitetura daquele lugar santo. A vestimenta das pessoas comuns e dos clérigos. Aquele coro de vozes a ecoar mundo à fora, pelas mãos invisíveis da tecnologia avançada, também conhecida como satélite.
Mas, à medida que os anos foram passando e modificando a vida, a sua e a dos outros, ao seu redor, foi se perdendo aquele interesse. Restaram-lhe os livros. Parou de comprá-los quando descobriu já bem tarde, que poderia emprestá-los gratuitamente no Gabinete de Leitura de sua cidade, visitado outrora por Sua Majestade, o Imperador, Pedro II.
No momento, estava lendo “A Montanha Mágica”, escrito em 1924, pelo romancista alemão Thomas Mann. Estava ainda nas primeiras páginas, da empolgante história de Hans Castorp, órfão de pai e de mãe, criado pelo tio e que, acometido de tuberculose, interna-se em um sanatório onde viverá experiências inesquecíveis na companhia de seu primo Joachim.
A Alemanha no período anterior à Primeira Grande Guerra o fascinava. Não sabia por qual motivo, mas, via-se lá, em meio àquela gente, a caminhar por aquelas ruas, a respirar aquela atmosfera. O jeito de se conduzir, o modo de falar e de se vestir daquela gente, lhe pareciam muito familiar, ainda que não encontrasse motivo para tanto.
O barulho vindo da cumeeira solta lá em cima, no telhado, não cessava. Era tenebroso e perturbador. Pensou dar um tempo na leitura, descer da montanha e ir à padaria tomar um café, naquela mesa de canto, que só ele ocupava. Dinheiro para um café tinha. E para o almoço, no dia seguinte, era outra história. Estava tentado a escrever o seu primeiro livro. Não sabia ao certo se a ousadia se justificativa. Havia lido inúmeros romances, à noite, enquanto brigava com o sono. Mas nunca havia escrito uma linha sequer. Pegou novamente “A Montanha Mágica”, e foi até a página onde havia a foto do autor do romance. Olhou-a por um tempo, temeroso de cometer heresia por desafiar um escritor consagrado, um dos melhores de todos os tempos. Mas, resolveu que cabia a pergunta: “Então, velhinho, o que me diz?”
Por Geraldo Costa Jr. / Crédito: Fred Stein Archive