Ouvira o professor dizer ao telefone à hora do intervalo, enquanto tomava o café, que os sentimentos humanos são como roupas que se guarda nas gavetas do coração. Ficam ali esquecidos, até que haja uma razão que justifique sejam usados.
O professor terminou o café e, depois, a conversa, que mantinha com seus colegas na sala reservada, cujas janelas, geralmente abertas, davam para o pátio da escola.
E ela, atenta aos acontecimentos, terminou as observações que julgava pertinente. Aprendera sem demora que para escrever deveria conhecer as pessoas mais amiúde, o que não era tão difícil, em tempos de redes sociais, bastaria observar as contradições e evitar as armadilhas das quais as pessoas vão lançando mão involuntariamente à medida que se expõem.
Mas não era tudo. Deveria também observar acontecimentos e coisas, sem perder os olhos das pessoas. Ver os acontecimentos e as coisas à sua volta, com olhos atentos e curiosos e tentar imaginá-los como poderiam ter sido diferentes. Lição número 1 da oficina de escrita criativa, da qual cursara uma aula apenas.
Desperdiçara tempo e dinheiro, ouvindo por uma hora, um sujeito pretensioso, vestindo paletó xadrez e gravatinha borboleta, ditar regras que não encontravam ressonância à sua conduta pouco recomendável para criar do nada feito Deus; do seu modo dolorido, confuso, indefinível de arrancar os sentimentos da gaveta e atirá-los ao papel na forma de palavras.
Voltou à sala de aula, mas o professor, seu amigo e confidente não estava lá. Havia ido embora, após uma ligação que recebera ao celular.
Não lhe importava naquele momento a ausência do professor. Já o havia usado o bastante para suas observações. E percebera com desgosto que, nos últimos dias, ele estava mais interessado em admirar suas pernas depiladas do que avaliar as suas poesias.
Ela poderia muito bem se virar sem os seus conselhos. Então resolveu que o balcão da padaria, ao lado da escola, era o lugar ideal para corrigir o que havia escrito.
A manhã estava nublada, o ar parado. Vez em quando batia um vento fraco, mas o suficiente para arrastar para longe dos seus olhos, as folhas caídas no meio fio da calçada. Folhas mortas e pisadas. Exatamente como ela se sentia algumas vezes. Folhas que lá estavam desde a primeira noite de outono, havia uma semana. E o outono começara com uma chuva forte. E naquele primeiro dia de outono, bem se lembrava, não saíra de casa, nem mesmo para ir à escola, atendendo ao conselho da mãe.
Conselhos. E quem disse que precisava deles? Ah, se não fossem as palavras colocadas no papel! E antes delas, os sentimentos. Já teria se perdido na vida como tantas vezes alertara a mãe sempre preocupada com o futuro da filha querida.
Haveria de se perder na vida. Pobre mãe, não dava conta disso, tão grandes eram suas expectativas. Chegaria, contudo, o momento inevitável. Porque há sentimentos que, quanto mais escondidos na gaveta do coração humano, maiores e mais fortes se tornam.
Um dia o professor lhe dissera ao final da aula: Não tenho conselhos para lhe dar, querida. E mesmo se os tivesse não os daria. Que cada um viva o seu inferno como eu vivo o meu.
Lembrava-se disso, já no balcão da padaria, enquanto esperava o atendente lhe trazer o café com leite que havia pedido. Olhando lá fora, observou uma colega de classe, que passava na calçada em frente à padaria, de mãos dadas com o namorado.
Poderia também arrumar um namorado. Não era de todo feia. Tinha lá os seus predicados. O olhar meigo, a voz suave e agradável. E, talvez, se cuidasse melhor da pele e dos cabelos, e fizesse as sobrancelhas e usasse o perfume que sua mãe tanto lhe recomendava, talvez fosse o bastante para impressionar. Poderia, como a colega, desfilar pela calçada de mãos dadas com um namoradinho, ainda que apenas por alguns dias.
Mas o seu interesse na pessoa humana era poder observá-las e dissecá-las, ainda que à distância. Uma ou duas palavras, em momentos casuais. Perguntas pontuais que serviam como atalho para chegar ao destino pretendido. Nenhuma intimidade. Nada. Nenhuma certeza. Apenas suposições. Porque bastam as suposições para escrever. As certezas são mentirosas, enganam, são objetos de disfarce para mentes e corações perturbados, como os de sua mãe, que ela acreditava tão bem conhecer.
A mãe era motivo de preocupação mais do que interesse para uma possível análise e conclusão quanto ao sentimento humano. Viúva, ainda bem cedo, a mãe escolhera viver para a filha, imaginando talvez que a filha estivesse mesmo disposta a permanecer para sempre ao seu lado.
Que tolice! Era o que pensava, cada vez que a mãe, toda sorridente e cheia de si, vinha abraça-la, ao vê-la chegar da escola por volta de 1 da tarde.
Mãezinha! Mas, em seguida a isto, não vinha de sua boca outra palavra que justificasse a ternura demonstrada.
A mãe a sufocava, com notícias as quais não tinham a menor importância, não correspondiam aos seus interesses e preocupações. Deixava a mãe falando e se trancava no banheiro, o único lugar onde conseguia ter tranquilidade para revisar os poemas que havia escrito na sala de aula, burlando com rara habilidade a matéria que os professores colocavam na lousa.
Uma noite, resolvera sair para dar uma volta pelas ruas do bairro. Sentou no banco da praça, o único que estava desocupado. Nos demais, os garotos que conhecia, ex-companheiros da escola, conversavam sem nenhum constrangimento assuntos que não eram de seu interesse.
Havia trazido o caderno de notas, e nele começou a escrever despretensiosamente, sem despertar a atenção dos garotos e dos transeuntes, e nem mesmo das senhoras saídas a pouco da igreja, e que, ao abrigo, esperavam sentadas pelo ônibus que demorava a chegar.
Por vezes, me cansa tudo isso, escreveu, enfim, quase rasgando a folha onde escrevia, tamanha a força que impusera no lápis.
Essa repetição do que não gosto, não me interessa e não me atrai.
Ver-me presa a rotina da vida, durante tanto tempo, adoece meu coração, enfraquece minha mente, nenhum bem me faz.
Refugio-me nessas horas, no silêncio que me protege, no escuro que me esconde dos olhares que me perseguem.
Não posso amar se não tenho vontade.
Não posso querer, se isso ou aquilo, nada me diz ao coração,
Não quero comigo, a par e passo, indefinidamente, o que sou obrigada a olhar e suportar todos os dias, como um castigo que não termina. Pessoas e lugares, fatos e coisas que se repetem.
Tantas vezes, eu olhei pela janela dessa prisão, sedenta por me libertar, sabendo que arrastaria comigo por todo sempre, remorso e sentimento de culpa.
Tantas vezes, estive a um passo de alcançar a porta, e abri-la.
E ir ao encontro de mim mesma.
Ao encontro daquela que sou, e que fica para fora dessa realidade que me aprisiona, como se delinquente eu fosse.
Grito! Choro! Não me ouvem.
Onde estão os meus agora, para me abraçarem, me chamarem pelo meu nome, porque sabem, de fato, quem sou.
Ao terminar, deitou o lápis sobre o caderno, e deixou que o olhar se perdesse numa direção qualquer e os pensamentos escapassem para longe.
Na manhã seguinte, ao ver que a filha demorava a sair do quarto para tomar o café, antes de ir para a escola, a mãe resolveu chamá-la duas ou três vezes sem obter resposta. Chamou novamente, e nada. Foi até o banheiro e encontrou a porta aberta e ninguém por lá. No corredor, olhou de novo na direção da cozinha, com alguma esperança de que pudesse encontrar a filha sentada à mesa, como de hábito, alimentando-se antes de ir à escola. Inútil.
Então foi para o quarto, e antes de abrir a porta, respirou fundo. No chão, ao lado da cama, encontrou uma folha de caderno com os dizeres acima. A cama estava arrumada, como se ninguém a tivesse tocado. Olhou em redor e percebeu um vazio que tivera certeza, jamais seria novamente preenchido. A janela do quarto estava aberta. Um vento fraco balançava a cortina. A tevê, ligada, fora do ar.
(Do livro “Contos da Tarde” de minha autoria, inédito).
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Reprodução da internet