Foi num desses dias que passam sem deixar lembranças que recordei-me de meus pais. Minha filha me dissera que havia ido ao cemitério e que encontra o túmulo da família bem cuidado. Pensei quem poderia ser o autor da generosa proeza. Afinal, nunca me ocupei de cuidar da futura morada desse meu corpo já combalido. E não me consta que meus irmãos tenham preocupação semelhante. Seu Gumercindo e dona Efigênia ganharam meu respeito e admiração só recentemente, quando, a maturidade, me fez compreendê-los melhor.
Meu pai era um comerciante bem sucedido. Tinha uma padaria, muito bem montada em bairro nobre da cidade. Mas era ignorante que só vendo. E se orgulhava de ter uma qualidade que julgava essencial. Só pensava em dinheiro. Nunca lera aos finais de semana o caderno de cultura de nenhum grande jornal da capital, no tempo em que essa prática ainda proporcionava alguma satisfação ao leitor. Mas, o caderno de economia, ele o devorava, principalmente, aos domingos. Atento à cotação do dólar, o movimento das ações, a oscilação das taxas de juros, as aplicações a médio e longo prazo. Papai era filho de feirantes. E para o desespero de minha mãe – metida a besta que só vendo – vivia com a caneta pendurada sobre a orelha. O velho não sabia lidar com calculadora, fazia contas em papel de pão, jornais e guardanapos, ou na palma da mão, se nada encontrasse pela frente. Pressa era com ele mesmo. Só puxava conversa comigo, para perguntar como havia me saído nas provas de matemática, sobre as quais, graças à curiosidade mórbida de minha mãe, ele sempre estava bem informado.
Papai não tinha nenhuma preocupação de diminuir um pouco sua ignorância, mas não admitia que os filhos enveredassem pelo mesmo caminho. Dizia que não iria criar filhos para que estes passassem a juventude a carregar caixas de tomate nos ombros, montando e desmontando barracas na feira, nem atendendo, atrás de balcão, clientes nem sempre educados e tolerantes.
Seu Gumercindo – ele adorava este nome! – queria que seus filhos fossem doutor. Fez três apostas. Acertou duas. Adivinhe você, atento leitor, em qual delas ele errou.
Apesar de sua incorrigível grosseria – da qual muito se orgulhava – era um homem de bom coração. Tinha uma língua ferina, é verdade. E se achava perseguido por todos. Um estranho, para ele, era um inimigo em potencial, até que ganhasse sua confiança. E se conseguisse, tornava-se para ele como um irmão. Os poucos que gozavam, porém, do privilégio de sua amizade, tinham por ele respeito e admiração.
Nós morávamos numa casa grande, confortável, que Seu Gumercindo construíra aos poucos, à medida que colhia os dividendos de sua polpuda caderneta de poupança, naquilo que ele definia orgulhosamente e cheio de entusiasmo como “o milagre econômico do presidente Sarney”. Vivia reclamando, escondido pelos cantos, que a casa já poderia estar concluída há muito tempo, não fosse obrigado a atender o luxo incorrigível e desnecessário – segundo ele – de minha mãe, que, apenas por capricho e falta de coisa melhor por fazer, vivia trocando os móveis da casa a cada ano. Acho que minha mãe era muito agradável na intimidade do casal, porque eu nunca vira o Seu Gumercindo lhe negar coisa alguma. Mamãe era mesmo uma tentação. Cheirosa e bem vestida. Lindos cabelos, sempre muito bem arrumados, dona Efigênia arrancava suspiros e olhares deslumbrados dos seus alunos e dos fregueses da padaria de papai, onde ela dava seu expediente nas horas de folga da escola, na qual lecionava como professora de Língua Portuguesa.
Na minha ingenuidade de um pirralho aborrecente, eu ficava pensando, qual a afinidade poderia haver entre eles? Que interesse os unia? Mamãe, toda cheia de pose, professora, falava três idiomas, tinha curso superior. Leitora de autores clássicos, entre eles, Voltaire, Rousseau, Proust e Joyce. Mamãe era formidável. Uma das mais assíduas frequentadoras do centenário Gabinete de Leitura da cidade. Habitual pesquisadora do Arquivo Histórico. Trajava-se com elegância. Falava corretamente o português, sem afetação; era poetisa, também, escrevia uns bons versos, e colaboradora eventual de um dos jornais locais, no qual escrevia uns artigos muito bons, segundo os leitores. E papai? Ora, papai…!
Eu só fui entender as coisas, quando, certa vez, meu irmão disse-me que os gemidos de mamãe, durante a noite, não eram exatamente de dor como eu imaginava. Eu tinha 12 anos, quando meu irmão explicou-me finalmente o que eram aqueles gemidos. E só então, compreendi o motivo da cumplicidade entre meus pais. Que casal interessante eles formavam! E quanto a mim? O que o destino me reservava? Veremos mais adiante. Quem sabe.
(Trecho de “60 Primaveras”, romance de minha autoria, inédito).
Por Geraldo Costa Jr. / Imagem ilustrativa. Foto: Cordon Press