Saibam todos. Eu já fui um grande homem – assim começava o calhamaço que Seu Arlindo encontrara na mochila do filho naquela manhã de domingo. O garoto, 14 anos, havia ido jogar bola com os amigos e só voltaria por volta de meio-dia. O pai achou interessante aquela introdução afirmativa e despretensiosa. E resolveu esquecer um pouco A Gazeta Esportiva que estava sobre a mesa da cozinha ao lado da xícara de café.
Vinha naqueles últimos dias desconfiando do filho mais novo. O menino nunca fora de dar trabalho e, de repente, passara a ter um comportamento esquisito e nada habitual. Jamais faltara às aulas e, quando questionado a respeito, desviara o rumo da conversa.
Preocupado, o pai fora ter com a direção da escola, buscou informações junto aos professores e aos amigos mais próximos, e nada. Ninguém havia notado diferença no comportamento e nas atitudes de Ricardinho.
Talvez estivesse apaixonado ou quase isso, pensou o pai, querendo encontrar nessa possiblidade um certo conforto. Mas, nas roupas do filho, não haviam marcas de batom e nenhum bilhetinho apaixonado. Nada! O que estaria acontecendo?
A dúvida e a falta de informações só fazia aumentar a preocupação do pai. A narrativa do filho, porém, era bastante sugestiva. Em meio a rabiscos e anotações, o pai ia se ocupando da leitura do texto escrito pelo filho.
Sim, eu já fui um grande homem. Pena que isso se deu quando eu tinha 17 anos – era o que dizia o texto – E nessa idade, a gente não sabe muito bem que rumo dar à vida. A decisão, contudo, devia ser minha. Tão somente minha. O curso que vinha fazendo não me agradava nenhum pouco. Embora, meu pai tivesse opinião bem diferente. Os pais, geralmente, projetam nos filhos, a vingança de suas frustrações, suas maiores derrotas, seus sonhos jamais realizados. Querem que os filhos sejam o que eles não conseguiram ser. No meu caso, um doutor engenheiro. Mas eu não dava pra coisa. Não tinha vocação para ciências exatas. Meu negócio era outro. Bem diferente. Eu me via em sala de aula, ensinando adolescentes a descobrir o mundo, para então, refazê-lo. Achava que essa descoberta era possível com a poesia. Apaixonado por Fernando Pessoa, vi-me desafiado por Herberto Hélder. Eu amava escrever. Só não sabia como fazê-lo com competência. Por isso passara a ler de tudo. De tudo um pouco. Encontrei na prosa fácil de Ernest Hemingway um estilo a ser imitado. Os outros brasileiros, eu os achava muito bons, alguns. Mas, somente Machado de Assis, fazia-me ocupar alguns minutos de meu escasso e precioso tempo entretido com a leitura de alguns de seus muitos livros que eu encontrava com facilidade na biblioteca da escola. Havia na sua prosa um cinismo sedutor, que eu adorava.
Achava que todo bom escritor tinha lá os seus hábitos malditos. Por isso, comprei na surdina um maço de cigarros na Mercearia do Lu. É para minha irmã, eu disse. Sua irmã não fuma Marlboro, disse ele, desconfiado. Nem eu, respondi. E aonde vai com essa porcaria? Não sei, eu disse ainda. E saí correndo. Vou contar para o seu pai, você vai ver! – ele ameaçou. Pois vá! E não demore. Se conseguir encontrá-lo lá em casa.
Nessa altura do texto, Seu Arlindo interrompeu a leitura. Maquinista da ferrovia, sua rotina de trabalho não era aquela mais adequada para cuidar e criar um filho sozinho. Viúvo havia 10 anos, não tinha irmãos nem parentes próximos. Viera de São Paulo transferido para aquela pequena cidade do interior, onde alugara casa e passara a viver com o filho. E o filho era tudo o que tinha na vida. E antes que o perdesse era preciso fazer algo mais. Tê-lo mais perto. Ouvi-lo mais. Olhá-lo nos olhos. Abraçá-lo. Fazer para o filho e pelo filho, tudo o que um pai deve fazer e não vinha fazendo.
O barulho do portão da casa que dava pra rua era inconfundível. Sentiu um nó na garganta e um arrepio de medo quando ouviu os passos do filho vindo pelo corredor. Sequer lembrou-se de recolocar o calhamaço que estava lendo de volta na mochila do filho.
Ricardinho entrou na cozinha com o semblante fechado, aborrecido, mas, quando viu o pai com seus escritos, esboçou um sorriso repentinamente.
Tudo bem, pai? Que bom encontrá-lo aqui!
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução Internet