Ousadia! Desaforo!
Quase blasfêmia, gritarão alguns. Nem pensar em juntar coisas tão opostas e contraditórias: religião e política, voto e reza, devoção e eleição, o sagrado e o profano. É um contra-senso colocar no mesmo saco igreja, Jesus, política, coisas da terra e coisas do céu. Imagine aliar as “Mãos ensanguentadas de Jesus” com as mãos sujas das porquices da politicalha. Não dá! Não pode!.
Na cabecinha de muitos cristãos, católicos ou não, passeia esta dicotomia, esse dualismo entre fé e prática política, entre religião e vida, entre salvação divina e libertação política. Pensar essa hipótese, dizem, é um insulto à pureza da fé, a transcendência da religião. Ambos não admitem misturar-se, como a água resiste a compor com o azeite.
Sustentam que a função da religião e das igrejas é eminentemente espiritual. Não deve se misturar com política, que é o campo próprio do Estado e dos partidos. E se apegam a Jesus para sustentar sua convicção. “Meu reino não é deste mundo”. (Jo 10,36)
E defendem que Jesus não atuou como líder político, e sua libertação não intencionava a economia e a política. Para esses, portanto, urna e altar não tem nada a ver.
Por outro lado, há os que professam sua fé numa expressão religiosa que assume a totalidade do ser humano: não só alma, mas corpo e alma; não só o individual, mas o social; o céu e a terra, no mundo onde ele está inserido, com tudo o que o compõe na ordem da natureza e do histórico-social: a economia, a política, a ecologia, a cultura, a expressão religiosa, a prática transformadora e até revolucionária, as estruturas, etc. E sustentam sua posição também em Jesus que disse: “o reino de Deus está aí no meio de vocês.” (Lc. 17,21). Para estes, Jesus Cristo é reencontro do homem com seus direitos e com sua dignidade.
Aliás, é bem assim que Ele define a sua missão:
“Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías. Abrindo-o, encontrou o lugar onde está escrito: o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a anistia aos presos, recuperar a vista aos cegos, restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”. (Lc. 17-19)
Para os que assim admitem este casamento entre a fé e o quotidiano dos que creem, os cristãos não constituem uma assembléia de anjos pairando sobre a desgraça da humanidade. O cidadão cristão não é alguém com a cabeça enterrada nas nuvens balançando os pés sobre os que se arrastam entre os pesadelos da vida.
Os conflitos existentes na sociedade se refletem no interior dos que organizam a sua pratica de vida com as praticas da fé. Enquanto houver divisões ideológicas e sociais, haverá para o cidadão cristão diferentes maneiras de encarar o fenômeno político e religioso.
Se quiser ainda Jesus como referência, ninguém como Ele assumiu o ser humano na sua totalidade do ser: alimentou o seu povo na fome de Deus, mas também na fome do pão.
Nessa perspectiva, correr para a urna é tão sagrado quanto correr para o altar.
Por Pe. Otto Dona